- Fundamento Constitucional e Competência Legislativa
O artigo 225 da Constituição Federal assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. Em matéria penal e ambiental, a competência legislativa é privativa da União (art. 22, I, CF), de modo que Estados e Municípios não podem editar leis que contrariem normas federais, notadamente a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). Assim, leis ou decretos municipais que visem “autorizar” ou “disciplinar” paredões de som são inconstitucionais, pois invadem competência federal e violam frontalmente o artigo 54 da mencionada lei.
- O Crime de Poluição Sonora
Art. 54 – Lei nº 9.605/1998:
Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena: reclusão, de um a quatro anos, e multa. A poluição sonora afeta a flora de forma indireta, ao perturbar espécies da fauna responsáveis pela polinização e dispersão de sementes, interrompendo ciclos naturais de regeneração. Também há efeitos diretos, pois vibrações acústicas intensas alteram o metabolismo e a resposta fisiológica das plantas, afetando o crescimento e a floração.
Quanto à fauna, os danos são amplos e cientificamente comprovados: perturbação da comunicação animal, essencial à reprodução, defesa e proteção de crias; alteração de rotas migratórias e abandono de ninhos; morte por colapso ou desorientação de aves e pequenos mamíferos; e afetação de ecossistemas aquáticos, prejudicando peixes e anfíbios sensíveis a vibrações. Esses efeitos configuram, inclusive, violação ao art. 29 da mesma lei, que criminaliza causar, direta ou indiretamente, a destruição de fauna silvestre.
- Efeitos sobre as Pessoas, a Fauna e a Flora
A poluição sonora é uma forma invisível de violência cotidiana. Afeta o sistema nervoso, eleva a pressão arterial, altera o sono e desencadeia quadros de ansiedade, irritabilidade e depressão.
Compromete a aprendizagem de crianças, a concentração de trabalhadores e a recuperação de enfermos, sendo especialmente nociva a idosos, bebês, pessoas autistas e portadores de transtornos mentais.
O ruído contínuo e intenso não é lazer, é agressão. Ele fere o direito fundamental ao sossego e à dignidade humana, transformando o que deveria ser uma convivência harmoniosa em um ambiente de sofrimento e desrespeito.
- Entendimento do STJ: Crime de Perigo Abstrato e Dispensa de Perícia
O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que o crime de poluição sonora é de perigo abstrato e formal, dispensando perícia técnica para aferição de decibéis. Basta a demonstração de que o ruído excedeu o limite de tolerância social e afetou o bem-estar da coletividade (HC 412.010/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 09/10/2017; AgRg no REsp 1.621.249/PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 20/03/2017).
O Direito Ambiental, em sua essência, é preventivo e protetivo. Não se aguarda o dano — atua-se para evitá-lo.
- Responsabilidade e Prevaricação dos Agentes Públicos
Os órgãos públicos responsáveis pela fiscalização — prefeituras, secretarias, guardas municipais e polícias ambientais — têm o dever legal de agir. Quando, por conveniência política, complacência ou medo de impopularidade, deixam de coibir paredões, incorrem em prevaricação, conforme o art. 319 do Código Penal:
“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.”
Essa omissão não é mera falha administrativa: é ilícito penal e violação de probidade, conforme o art. 37 da Constituição Federal e o art. 3º da Lei 9.605/98. O agente público que se cala diante da destruição ambiental contribui para o crime que deveria reprimir.
- O Olhar das Crianças e a Consciência Coletiva
Durante uma atividade de educação humanitária com alunos de 6 a 11 anos, em uma escola de tempo integral de Catu/BA, propus a redação de uma história sobre uma cidade imaginária sem leis — “Bagunçópolis”. O resultado foi revelador: a maioria descreveu uma cidade dominada por barulhos de paredões e confusão generalizada.
As crianças compreenderam, por instinto ético, que a ausência de limites e o excesso de ruído representam o caos. Essa sensibilidade infantil nos recorda que o respeito ao silêncio e à ordem é sinal de evolução moral, não de repressão
Precisamos ensinar nossas crianças a respeitar o próximo, para que a vida no futuro seja viável. Ao tolerar práticas abusivas, estamos ensinando às novas gerações que não existem limites — e é justamente essa ausência de limites que alimenta a violência e a desordem que tanto nos assustam na sociedade contemporânea.
- Direito ao Sossego e Alternativas de Lazer
O direito ao sossego, à saúde e à tranquilidade é corolário do direito à vida digna. A sociedade não precisa escolher entre “diversão” e “ordem” — precisa reinventar a forma de se divertir.
A modernidade já oferece soluções sustentáveis e inclusivas: festas silenciosas com fones de ouvido (silent parties), nas quais cada pessoa ouve a música no volume que deseja; e eventos em estabelecimentos com controle acústico efetivo e foco em convivência comunitária.
Quando eu era adolescente, frequentava bailes no clube da cidade, um espaço de convivência alegre e segura, com isolamento acústico adequado, que respeitava o descanso da vizinhança. Hoje, os estilos musicais mudaram, os gostos também, mas o princípio de convivência civilizada deve permanecer. Nada impede que os jovens tenham espaços modernos e vibrantes, desde que construídos com isolamento acústico total, garantindo o direito à diversão sem o sacrifício da coletividade.
Reconheço, contudo, a importância das opções de lazer e diversão, especialmente para a juventude, que necessita de espaços de convivência e expressão cultural. Os jovens precisam disso — de ambientes que favoreçam a alegria, a socialização e o desenvolvimento humano.
Entretanto, é indispensável que os empresários e investidores do setor de entretenimento adotem uma postura criativa e socialmente responsável, buscando novos formatos de festas, raves, bares e boates que garantam a diversão sem perturbar o sossego público.
O dia em que o empresariado compreender que o verdadeiro sucesso está em conciliar lucro com respeito, inovação com empatia e diversão com dignidade, estaremos dando um passo essencial rumo a uma sociedade mais equilibrada e humana. Quem investir nesse caminho, certamente estará contribuindo para um mundo melhor — com respeito e dignidade a todos, sem exceção.
Viver em sociedade implica renunciar a comportamentos danosos ao próximo. Essa é a essência da civilização.
- Conclusão
O crime de poluição sonora (art. 54 da Lei 9.605/98) é de perigo abstrato e formal, dispensa perícia e visa proteger a saúde humana, a fauna, a flora e a paz social. Qualquer tentativa de autorizar paredões por lei local é inconstitucional e atenta contra os direitos fundamentais.
Mais grave ainda é a omissão das autoridades que deveriam fiscalizar, pois essa inércia configura prevaricação e rompe o pacto ético que sustenta a administração pública.
A defesa do silêncio não é intolerância — é defesa da vida, da empatia e do equilíbrio. É tempo de compreender que respeitar o sossego é um ato de civilização.
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